domingo, 23 de maio de 2010

A discricionariedade administrativa no direito do ambiente

A discricionariedade administrativa no Direito do Ambiente

Terra de ninguém entre o obrigatório e o permitido

Pedro Santos Azevedo

I. Introdução

1. O Direito do Ambiente é, por excelência, um viajante por entre as várias terras que são os ramos do Direito. Não se queda no Direito Penal, apesar das coimas e multas que aplica; não se fica pelo Processo Civil, apesar de dele partilhar algumas acções e nele também litigar. Não se limitará, por certo, ao Direito Constitucional, apesar de nele também se arvorar. É no Direito Internacional Público que passa ainda algum tempo, dada a necessária concertação internacional para a salvaguarda do Ambiente como um todo. No próprio Direito Civil se aventura, dada a definição de coisa e o direito de propriedade e suas limitações. E, se também o Direito Administrativo não lhe é bastante (até por tudo o que expusemos nas linhas anteriores), é neste que, na expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, podemos montar o nosso “posto de observação”.

Acresce a isto o facto de estudarmos, nesta pequena monografia, a discricionariedade, que é, por definição, matéria-chave do Direito Administrativo. Falamos, portanto, desta específica área em que a conjugação da importância do concreto com a vinculação através da reserva de lei a normas de carácter geral e abstracto criam uma tensão dialéctica sempre aprazível aos juristas. Nesse duelo de titãs nos aventuramos.

2. Após o estudo de várias matérias verificamos que o Direito do Ambiente é das áreas onde existe maior discricionariedade por parte da Administração. Por várias razões.

Em primeiro lugar, as normas do topo da pirâmide hierárquica[1] que regulam o direito do ambiente – e falamos nestas porque são as que conformam aquela que pode ser a regulação legislativa posterior – são normas muito amplas, com conceitos indeterminados e clausulas abertas; são também de algum modo progressivas e de conteúdo duplo: quer face ao particular, quer face aos próprios órgãos legislativos, um pouco à semelhança das policies de Dworkin[2].

Em segundo lugar, a conformação legislativa dos casos acaba por demonstrar essa mesma característica, a da indeterminação. Característica essa que mais do que fazer com que os regulamentos tenham uma ampla margem de manobra para determinar com exactidão o que a Administração pretende, serve como molde para esses mesmos regulamentos, que seguem essa mesma tendência – minorada, obviamente - criando aquilo a que nós chamamos efeito de indeterminação por cascata, que termina, normalmente, com a discricionariedade. Este efeito faz com que o “exemplo vindo de cima” seja seguido nas várias instâncias inferiores que, concretizando sucessivamente alguns aspectos (nomeadamente a nível de vagueza – através da densificação de conceitos por regulamentos ou portarias), deixam outros – muitas vezes porque realmente têm de ser deixados, por falta de possibilidade de legalmente ou regulamentarmente prever todos os possíveis casos – à discricionariedade dos executores.

Esta discricionariedade atribuída à Administração nos níveis hierárquicos mais baixos serve para pôr fim a essa indeterminação, e para pôr fim à mesma mais perto do mundo real, do mundo fáctico. Esta não é, todavia, sinónimo de arbitrariedade – é conformada por normas bastante bem construídas, de níveis superiores da cadeia hierárquica, e a essas recorreremos.

Assim, podemos dizer que num primeiro nível se confere discricionariedade. Num segundo momento, existe a regulação dessa mesma discricionariedade, regulação essa que afasta a possibilidade desta ser considerada arbitrariedade. E que, em conjugação com o terceiro momento, se permite que os actos administrativos sejam sindicados em tribunal na precisa medida em que a acção ou omissão fosse suficientemente vinculada em termos legais[3].

II. A indeterminação linguística e a discricionariedade

1. Todas as normas têm de ser interpretadas. Longe vai o brocardo in claris non fit interpretatio. Normas essas que são representadas, normalmente, por palavras. Palavras essas que são apresentadas em contexto[4]. Na realidade, em contexto duplo: em contexto com as palavras que as circundam – a frase - e em contexto com a realidade que o interprete imediatamente selecciona para melhor pensar a norma.

A moderna doutrina, mais do que dividir, como faz o Código Civil, entre lei e espírito da lei, fala agora do enunciado normativo e da norma. A norma é o conteúdo real de regulação. O enunciado normativo é o veículo pelo qual temos conhecimento da norma, que a traz para o mundo empírico. Todavia, e algo como a alegoria das cavernas de Platão, por impossibilidades várias, a norma não nos chega representada imaculadamente e de apreensão imediata. Tal acontece por problemas linguísticos. O que se pretende é apurar e aperfeiçoar de tal modo o que o enunciado significa de modo a que encontremos a norma na sua totalidade.

Assim justificamos o facto de começar o trabalho com o estudo da linguagem, importantíssimo em sede de discricionariedade. As normas tendem a ser emitidas sob a forma de formulações frásicas, apesar de o poderem ser de outro modo – por exemplo, de modo gráfico, como os sinais de trânsito, que nada mais são do que normas.

Apenas uma nota inicial para dizer que seguiremos de perto a sistematização e a doutrina do Prof. David Duarte[5] nesta matéria.

Esquecendo os problemas sintácticos, que são relativamente incidentais e facilmente resolúveis, iremos enquadrar os problemas semânticos (de compreensão do enunciado normativo) em polissemia, vagueza e textura aberta. E, como já vimos e esperamos ficar patente durante a análise dos vários tipos de discricionariedade, este estudo não só não é despiciendo, como não é de todo geral (apesar de poder ser aplicada a qualquer norma) – faz imenso sentido em sede de direito do ambiente

a) A polissemia[6] tem que ver com a multiplicidade de sentidos duma mesma palavra. Assim, percebe-se que podem existir problemas em determinar o que quer uma determinada palavra significar. Após isso ser feito, e verificado outro significado possível, temos uma colisão que exige que se decida qual é o verdadeiro significado contido na norma, por contraposição aos vários significados contidos no enunciado normativo.

b) A vagueza tem como efeito a dificuldade de precisar exactamente a extensão de um conceito. Se dizemos que o perigo elevado[7] para a extinção duma determinada espécie pode ser fundamento de acto administrativo para activar o fundo de protecção da mesma, como definir perigo elevado? Se apenas existir um macho e uma fêmea da referida espécie, o perigo é manifestamente elevado. Se existirem apenas duas de cada, também o será. E se existirem 10? 20? 500? 50.000? Assim, esta categoria deve ser representada por uma zona de certeza, e por uma zona de incerteza negativa e positiva

c

b

a


C seria set ou conjunto de casos em que existem ainda, por exemplo, 50.000 espécimes da referida espécie. Claramente não se enquadra no conceito de perigo elevado. B seria o conjunto dos casos em que não há qualquer dúvida de que o caso em apreço se encontra no conceito de perigo elevado: a existência, por exemplo, de apenas um macho e uma fêmea dessa espécie. Por fim, A seria o caso em que, pela negativa, existem certezas que de não está preenchida a norma: existe apenas um espécime, sendo impossível a manutenção da mesma.

c) A textura aberta refere-se aos casos em que à partida os conceitos não parecem padecer de indefinição, mas determinados casos concretos, algo diferentes do habitual, levam à dúvida sobre o enquadramento do mesmo na norma: o exemplo mais famoso é o de Hart no The Concept of Law, em que se proíbem veículos dentro dum parque. Uma criança num pequeno carrinho de brincar – todavia, com um motor – está proibida de entrar no parque? É um caso relativamente excepcional, que está relacionado com a defeasibility ou derrotabilidade na sua vertente fáctica[8]

Note-se que nos referimos ao momento interpretativo, pelo que não existe, neste caso, verdadeira discricionariedade em a) – é necessária a utilização do contexto para procurar o significado que melhor se adeqúe ao elemento teleológico da norma e à unidade e coerência do ordenamento.

Já quanto a b) pensamos existir verdadeira discricionariedade.

Para terminar, quanto a c), a a inclusão ou não do caso na norma não é discricionária. Neste sentido vai também o autor, dizendo que a textura aberta é uma indefinição que resulta da superveniência perante a palavra de uma realidade que vai suscitar uma orla de incerteza inesperada, pelo que, por isso, é a própria composição da figura que a afasta de uma utilização da linguagem apta a conferir alternativas.

No sentido contrário ao de texto, o referido autor considera que a polissemia confere discricionariedade porque pode ser instrumentalizada a finalidade de conferir alternativas. Na polissemia acidental, e de significados diferentes, tal não acontece, mas pode acontecer quando há significados próximos. Discordamos porque consideramos que quando os sentidos são próximos não há polissemia, há necessidade de construir o conceito como compreendendo todos os casos. E porque nos outros casos não há discricionariedade, apenas o conceito que encaixe no contexto normativo pode ser aceite.

Concluímos que, em termos linguísticos, existe discricionariedade no caso de vagueza, que se consubstanciam na decisão de englobar os casos de fronteira no conceito da previsão da norma. Ou a de o não fazer.

Parece ir no mesmo sentido o autor supra referido, quando refere que há cenários em que a indefinição da linguagem provocada pela incerteza não é resolvida no ordenamento pelo que traduz os casos em que a determinação semântica da norma tem de se fazer através de uma escolha de uma alternativa para a qual os critérios de determinação já fracassaram.

III. Discricionariedade sem indeterminação linguística

As normas de competência vêm associadas, normalmente, a normas de conduta. Considerando-as latu sensu – ou seja, não precisam de definir actuações fácticas –, estas normas podem definir critérios jurídicos – o art 8.º do Decreto-Lei 285/2007 de 17 de Agosto é um bom exemplo disso mesmo: concretiza em que é que se corporiza o procedimento especial que a Administração Pública está autorizada a conceder no caso de classificação de um Projecto como PIN. Caso não fizesse, tínhamos uma norma de competência (a da possibilidade de autorização de um procedimento especial) sem normas de conduta, o que leva à discricionariedade. Note-se que mesmo a norma de competência pode conter discricionariedade (e não apenas a linguística, que é comum a todas).

Imagine-se a seguinte norma: no caso de classificação como PIN, a Administração pode reduzir o prazo da audiência dos interessados ou mesmo suprimi-la. Temos discricionariedade alternativa entre reduzir e suprimir (além da discricionariedade dentro do conceito de redução). Este é o típico caso, na arrumação do Prof. David Duarte, de discricionariedade na estatuição de uma norma impositiva. No entanto, outros tipos há, que não os disjuntivos – é o caso da indeterminação de um componente da estatuição.

Façamos aqui uma pequena pausa para explicar algo que parece importante frisar. A a incerteza na previsão leva à duvida sobre se se aplica ou não a norma: pois considerar que determinado caso se enquadra na previsão da norma é dizer que esta se aplica imediatamente, e excluir, seja pela zona de certeza positiva ou negativa, seja por afastamento de um dos significantes no caso de palavras polissémicas, é dizer que esta não se aplica.

Neste caso estamos perante uma situação diferente: a norma vai aplicar-se (porque já antes foi feita a operação de subsunção) e a única dúvida é em que termos. É neste contexto que surge uma controversa questão sobre a localização da discricionariedade na norma (na previsão ou não estatuição). Parece que, excepto na discricionariedade derivada da linguagem, surgirá na estatuição. Mas, note-se, a discricionariedade derivada da linguagem engloba a maior parte dos casos, nomeadamente por causa da vagueza.

Procuremos alguns casos de discricionariedade não linguística, por exemplo, na Lei de Bases do Ambiente.

O artigo 23.º/1/al. e) da referida lei enuncia que “O combate à poluição derivada do uso de compostos químicos, no âmbito da defesa do ambiente, processa-se, designadamente, através da aplicação de instrumentos fiscais e financeiros que incentivem a reciclagem e utilização de resíduos;”.

Estamos perante um caso em que vários instrumentos fiscais e financeiros podem ser idóneos para o combate à poluição derivada de compostos químicos (dentro dos que incentivem a reciclagem e utilização de resíduos).

Imagine-se uma norma em que se refira: “a administração não pode permitir o acesso aos documentos administrativos e a reclamação de um acto administrativo”. Estabelece-se aqui a proibição de duas condutas porque em simultâneo, permitindo-se implicitamente o acesso aos documentos administrativos, ou a reclamação directa do acto administrativo. Assim, existe discricionariedade por parte da administração para decidir.

Todas as normas permissivas conferem também discricionariedade: a administração pode ou não emitir a licença ambiental; pode ou não aceitar o acesso aos documentos administrativos. Nestes casos, obviamente, entram outras normas em jogo. Não existe em rigor uma grande discricionariedade. O caso pretende ser apenas um exemplo, dado que na realidade eventualmente a CADA analisaria o pedido e o seu parecer é vinculado aos critérios jurídicos vigentes.

Note-se ainda que a discricionariedade não é total. Além de todos os outros mecanismos de controlo da discricionariedade – que veremos a seguir – existe um outro: a relação entre a previsão e a estatuição. Imagine-se a seguinte norma:

“No caso de um acto lesivo ou potencialmente lesivo, a administração pública deve permitir o acesso a todos os documentos administrativos ou a alguns deles.”

A primeira parte da previsão está estruturalmente ligada à primeira parte da estatuição, tal como a segunda parte da previsão está estruturalmente ligada à segunda parte da previsão. É uma questão de individuação normativa, na qual consideramos (porque propugnamos a tese da norma como elemento irredutível e, como tal, sempre que existam dois sentidos deônticos possíveis estamos perante duas normas) estar perante um único enunciado normativo e perante duas normas. E, como os enunciados normativos são infinitamente interdefiníveis entre si, e a força paramétrica surge da norma, seria possível reescrever o enunciado normativo em duas secções separadas.

IV. Conclusão

Optámos por um trabalho mais teórico, ao contrário do anterior sobre a classificação de um projecto como PIN+. Decidimos entrar a fundo nas correntes mais analíticas do direito – considerámos que era também importante, dado o trabalho anterior ser vincadamente de aplicação de normas ao caso concreto (quase um trabalho de juiz), questionarmo-nos sobre algumas questões de base. A falta ficou a análise dos modos de controlar a discricionariedade. Nomeadamente através do respeito por alguns princípios gerais como o da imparcialidade, o da prossecução do interesse público, etc.

Para terminar – e agora em sede de conclusões jurídicas – o enquadramento de um acto como discricionário ou não tem toda a relevância a nível de contencioso: imagine-se a prática de um acto legalmente devido (um acto discricionário não é legalmente devido ou, a sê-lo, é-o apenas perante determinadas circunstancias guiadas pelos princípios que referimos supra). Confronte-se por exemplo o referido art. 71.º/2 CPTA em que o juiz apenas pode explicitar vinculações a seguir pela administração. Por outro lado, sempre que estamos em sede de discricionariedade o poder dos juízes, não apenas na acção de condenação ao acto legalmente devido, mas em todos, é muito mais ténue em respeito ao principio da separação de poderes.



[1] Referimo-nos aqui a normas de valor constitucional ou semelhante (comunitário ou internacional) e não a um qualquer entendimento de norma fundamentante, como a hipotética grundnorm kelseniana ou a norma de reconhecimento Hartiana.

[2] Nesta última vertente: isto é, a semelhança com as policies tem apenas que ver com o facto da norma ser também dirigida às autoridades legislativas. A isto também se referia a progressividade.

[3] Veja-se, por exemplo, em sede do acto administrativo devido, uma fuga à clássica separação de poderes e, portanto, num sentido algo contrário ao dado em texto, o art. 71.º/2 CPTA, em que quase se permite que os tribunais forneçam um “código anotado” à administração pública.

[4] Contexto jurídico ou normativo. Quanto ao contexto em geral, numa postura tendencialmente contra, cfr. Popper, Karl, O mito do contexto, Edições 70.

[5] Sem prejuízo de não concordarmos com uma ou outra coisa, ou de pontualmente nos afastarmos desta doutrina, a obra foi fundamental para percorrer a discricionariedade e aplicá-la ao direito do ambiente neste trabalho. Falamos de A norma de legalidade procedimental administrativa – a teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória, Almedina, 2006.

[6] “Na linguagem corrente sucede muito frequentemente que a mesma palavra designa de modo e maneira diferentes – e portanto que pertence a símbolos diferentes – ou sucede que duas palavras que designam de modos e maneiras diferentes são aparentemente empregues na proposição do mesmo modo e maneira.” In Wittgenstein, Tratado lógico filosófico, Fundação Calouste Gulbenkian. Curioso é o exemplo dado a seguir pelo autor, que parece ser pensado para o nosso caso: “Verde é verde – as palavras são símbolos distintos”.

[7] Como dizemos elevado, podemos dizer longe, perto, alto, grande, bom. Faz-nos até lembrar a obra de von Wright, The varieties of Goodness. No fundo, qualquer qualificativo indeterminável e passível de graduação abstracta leva, em concreto, a dificuldades de determinação, especialmente nas borderlines.

[8] Cfr., por exemplo, entre tantos, Sartor, G. Defeasibility in Legal Reasoning. In Bankowski, Z. et al., Informatics and the Foundations of Legal Reasoning, 119-158. Kluwer Acadamic Publishers: Dordrecht, 1995.

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