sexta-feira, 14 de maio de 2010

21. Propriedade Privada e Protecção Ambiental: em busca da concordância prática

O Direito de Propriedade Privada

O direito de propriedade está consagrado no artigo 62.º da Lei Fundamental, correspondendo este a um direito económico, bem como também, a um direito real que, à luz da terminologia adoptada por Menezes Cordeiro se trata de uma permissão normativa específica de aproveitamento de uma coisa corpórea. No artigo 1305.º do Código Civil encontramos a definição do seu conteúdo, que se traduz no gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição, sendo que só as coisas corpóreas, móveis e imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade.
Assim se entende que a propriedade é a relação que se estabelece entre um sujeito e uma coisa corpórea, sendo que o sujeito pode dispor livremente desta e, esta faculdade do sujeito em relação à coisa é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva,de onde resulta que dispor dessa coisa, significa ter o direito de decidir em relação a ela. O direito de propriedade é assim, o direito à protecção da relação de um sujeito sobre um objecto (embora existam autores que refutam a ideia de que existe uma relação entre o sujeito e a coisa corpórea). É o direito de dispor de algo de modo pleno, independentemente de se ter a sua posse de facto e apenas a relação que preencha os requisitos determinados pelo Direito é passível de ser protegida.
A propriedade é um instituto que vem sofrendo alterações constantes, desde a sua já longa existência. Todas essas alterações foram provocadas pela necessidade de adequação às novas realidades económicas, bem como sociais em constante mutação, sofridas pela Humanidade. Deste modo, o direito de propriedade necessita de constante actualização, na medida em que, as circunstâncias sociais, tecnológicas e políticas na comunidade, assim como as próprias indagações éticas que a relação homem/natureza inevitavelmente suscitam, se encontram em constante modificação.
Reforçando o que foi exposto, vem o artigo 62.º da CRP, no seu n.º 2, dispor que a requisição e expropriação por utilidade pública, para além de só poderem ser realizadas com base na lei, conferem ao particular o direito a que lhe seja paga uma justa indemnização. Também à propriedade é atribuída a característica da sequela, que confere ao proprietário o direito de “perseguir” a coisa onde quer que ela esteja, uma vez que o seu direito é oponível “erga omnes”.

Propriedade Privada e Protecção Ambiental

Já Aristoteles defendia o direito à propriedade privada como sendo algo de essencial à natureza do Homem. Mas independentemente das características apontadas ao direito de propriedade e da sua tão grande importância para o ser humano, cumpre conjugar este aspecto com as circunstâncias já apontadas, em relação à evolução do instituto do direito de propriedade face às alterações económicas e sociais que ocorrem na Humanidade. Estes aspectos levam-nos a concluir que, em face de todos as catástrofes embientais que têm acontecido e de todas as questões ambientais que se têm discutido, propriedade privada e protecção ambiental devem ser duas realidades que devem estar conjugadas e ser compatibilizadas entre sí.
Alterações muito significativas têm acontecido no nosso planeta, o aquecimento global é um exemplo e que se deve, infelizmente, às condutas humanas que violam o meio-ambiente de forma constante. Mas também as condutas dos proprietários no uso do seu direito de propriedade, constitucionalmente protegido se revelam danosas para o meio-ambiente, quando esse uso é feito de forma abusiva. Há que tentar harmonizar as duas realidades, nomeadamente a livre iniciativa económica, com a qual a propriedade está intimamente ligada e a protecção do ambiente que não deve ser frustrada pela consagração da existência da primeira.
O crescimento populacional associado aos exigentes padrões de consumo existentes hoje, não se compaginam com as necessidades normais das gerações presentes, nem se adequam à preservação da qualidade ambiental para as gerações futuras.
Há que ter em conta que o direito de propriedade pode incidir, entre outros, quer sobre bens de consumo, quer sobre bens de produção e, que o proprietário desses bens, normalmente se recusa a adoptar um modelo de desenvolvimento sustentável, protector do meio-ambiente e tanto das gerações presentes como das vindouras.
Deste modo, compete ao Estado regular o uso dos recursos ambientais, evitando a sua deterioração, encontrando uma solução de equilíbrio entre o direito de propriedade individual e a defesa da qualidade de vida de toda a colectividade, assim se fazendo uma ponderação entre interesses individuais e interesses colectivos, da qual se deve afirmar o interesse preponderante, o interesse público. Pois, se bem que a produção e o consumo são essenciais à vida humana, também o é o Ambiente, na medida em que sem ele também não existirá vida. Logo, há que proteger o Ambiente, protegendo, assim, a vida humana das actividades abusivas que, por vezes surgem no exercício do direito de propriedade.
Neste campo, o Direito do Ambiente tem a importante tarefa de regular, implementando meios na tentativa de elevar a qualidade de vida das populações, tentando inverter a tendência de crescimento da economia sem respeito pela degradação do meio-ambiente natural. Não se trata apenas de alcançar um determinado nível de qualidade de vida, mas sim de defender a própria vida.
O Direito do Ambiente tem uma função de planeamento, controlo e fiscalização de actividades económicas que à partida se revelam danosas para o Ambiente. A este nível, podemos referir o caso da Avaliação de Impacto Ambiental e da licença ambiental a que estão sujeitos determinados tipos de indústria, extremamente poluentes. Tais exigências de estudos e licenças ambientais, têm cabimento à luz do Princípio da Prevenção que se caracteriza pela adopção de medidas que evitem a criação de perigos para o meio-ambiente, reduzindo e eliminando as causas susceptíveis de alterar a sua qualidade. Como bem sabemos, um dano causado ao Ambiente pode ser de muito dificil reparação, ou até mesmo ser irreparável, daí este princípio ser tão relevante.
Há, deste modo, que temperar as concepções liberais e individualistas do direito de propriedade que surgiram com a Revolução Industrial e com a Revolução Francesa, no sentido de ausência absoluta de intervenção do Estado na actividade particular com as exigências que a protecção ambiental nos impõe hoje.
Pode dizer-se que o exercício do direito de propriedade é afectado pelo Direito do Ambiente, na medida em que este visa colocar a protecção de habitats e espécies e da qualidade de vida humana, acima de interesses meramente indivíduais, nomeadamente económicos.
Contudo, nunca o Estado deixa os proprietários desprotegidos. O que o Direito do Ambiente pretende não é a abulição da propriedade privada, mas sim a sua compatibilização e respeito para com a protecção do Ambiente. Vejamos o Princípio do Poluídor/Pagador que, na sua origem, mais do que uma questão de justiça social, tem uma noção de justiça ambiental. Quem polui, paga! E paga na medida dos danos que causar. Esta é uma medida repressiva que visa incutir aos proprietários de indústrias poluentes a adopção de comportamentos que minimizem as suas emissões nocivas para o Ambiente, pois estes sabem que, à partida é-lhes menos oneroso prevenir do que remediar.
O proprietário nunca é excluído da titularidade do seu direito, a menos que se recorra ao mecanismo da expropriação, apenas o que pode ser limitado é o seu exercício. Nestes termos, o titular do direito de propriedade, nunca fica exonerado de utilizar o seu direito de forma a não prejudicar o interesse da colectivadade. Neste ponto, temos de olhar não apenas para a colectividade no sentido daqueles que poderão ser afectados pelo exercício do direito de propriedade, mas especialmente para as relações de vizinhança, aqueles que são os principais lesados.
Mas precisamente para fazer face a este tipo de situações, a lei, permite àqueles que se sintam directa ou indirectamente lesados pela utilização abusiva do direito de propriedade, a possibilidade de reagir, nomeadamente através dos artigos 9.º n.º 2 e 55.º n.º 1, alínea f) CPTA, bem como através do 53.º do CPA. Estes mecanismos veem, mais uma vez, reforçar a tentativa de compatibilização prática entre o direito de propriedade e a tutela do Ambiente, manifestada pela preocupação dos particulares que se vêem afectados na sua qualidade de vida.

Função Social da Propriedade

Reforçando a ideia de compatibilização atrás desenvolvida, há que salientar a existência de ordenamentos jurídicos em que esta tentativa de compatibilização entre propriedade privada e protecção ambiental é prosseguida através de fortes medidas repressivas. No ordenamento jurídico brasileiro existe um princípio vastíssimo, o princípio da função social da propriedade, susceptível de abarcar todo o sistema de limitações administrativas ao direito de propriedade. Existem autores, inclusivé, que afirmam que o direito de propriedade justifica-se por ter uma função social, sendo que todo e qualquer bem apropriável móvel, imóvel, ou mesmo imaterial de produção ou consumo está submetido ao princípio da função social da propriedade. Deste modo, reconhecendo um ordenamento jurídico que o exercício dos direitos inerentes à propriedade não pode ser protegido exclusivamente para a finalidade de satisfação dos interesses do proprietário, a função da propriedade torna-se social.

Conclusão

Cumpre agora fazer uma apreciação crítica do que foi exposto.
É uma verdade irrefutável que o direito à propriedade privada, sendo um direito constitucionalmente consagrado, deva ser por isso tutelado e respeitado. Também a sua oponibilidade “erga omnes” assim o dita. Desta forma, não pode o Direito abstrair-se de proteger os titulares do direito de propriedade. Não sou defensora do princípio da função social da propriedade, como alguns autores brasileiros a definem. O direito de propriedade pertence ao seu titular e justifica-se pelos interesses deste e não da sociedade, embora lhe possam ser impostas restrições ao seu exercício, por respeito à comunidade e ao meio-ambiente que o redeia.
Contudo e, face às circunstâncias actuais, não podemos defender uma visão totalmente liberal e individualista deste direito, no sentido do Estado não poder interferir nele mesmo quando este esteja a lesar interesses alheios. Os direitos de uso, fruição e disposição pertencem em pleno ao seu titular e não devem ser restringidos, a menos que fortes razões se imponham e, assim o justifica a ponderação entre interesses individuais e concretos e o interesse público, a que a Administração sempre está vinculada.
Assim, o Estado enquanto regulador, deve harmonizar o direito à propriedade privada e à livre iniciativa económica com a protecção ambiental, de forma a não permitir que os primeiros se sobreponham a esta última, privilegiando uns e lesando o Ambiente e a qualidade de vida de outros. Para tal, o Direito do Ambiente está munido de diplomas legais que impõem desde a realização de estudos, à obtenção de licenças ambientais, bem como a proibição de construção em certas e determinadas zonas protegidas. E nenhum deles tem o intuíto de impedir o direito de propriedade e a livre iniciativa económica, apenas têm como função impedir que estes direitos, sendo realizados de certa forma, lesem o meio-ambiente e degradem a qualidade de vida das comunidades.

Bibliografia
Cordeiro, A. Menezes, Direitos Reais, LEX, 1993;
Silva, Vasco Pereira, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002;
Figueiredo, Guilherme José Purvin de, A Propriedade no Direito Ambiental, Editora Revista dos Tribunais, 2008

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