terça-feira, 18 de maio de 2010

A Acção Popular

O art.66º, nº2 da Constituição da República Portuguesa estabelece que a garantia do direito fundamental ao ambiente depende da actuação do Estado e do envolvimento e participação dos cidadãos. Pois, só a participação destes últimos permite tomar decisões mais correctas, na medida em que as autoridades decisoras tiveram oportunidade de conhecer os diferentes interesses envolvidos e , como tal, ficaram a saber mais, estando em melhores condições de decidir. Quer isto dizer que, a realização do Estado de Direito do Ambiente depende de dois pressupostos: das tarefas desempenhadas pelo Estado e da intervenção/actuação dos indivíduos. É no procedimento (legislativo, administrativo e judicial) que se vão encontrar e ponderar todas estas vontades.
O tema que nos traz aqui em análise é o da participação no procedimento administrativo para defesa do ambiente, que assume uma dimensão muito importante, uma importância decisiva. Uma vez que, a participação vai servir de "contra-parte" à liberdade decisória da Administração e vai potenciar a criação de racionalidade no funcionamento da Administração.
Em bom rigor e como sustenta o Prof. Vasco Pereia da Silva, o direito fundamental ao ambiente implica o reconhecimento de direitos de procedimento, entre os quais se encontra o direito de acção popular. Este goza de consagração constitucional no art. 52º, nº3 e reveste igualmente a dupla natureza de direito de participação política e de garantia de outros direitos, e constitui no fundo uma "declinação" do direito de acção judicial (art.20º da CRP), só que para defesa de certos bens constitucionalmente protegidos, de âmbito transindividual, não tendo o âmbito universal do direito de petição nem do direito de acção judicial comum.
A abertura da acção popular, nos termos e com a extensão que é feita no art.52º, nº3 da CRP, faz desta norma uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos e interesses fundamentais constitucionalmente consagrados. Embora, a CRP reenvie para a lei a definição dos casos e termos em que os cidadãos e as associações podem recorrer à acção popular (Lei nº83/95, de 31 de Agosto), o enunciado no nº3 do supra citado artigo 52º aponta claramente para uma garantia de acção popular perante qualquer tribunal de acordo com as regras de competência e de processo legalmente estabelecidas. Nestas acções e, perante a impossibilidade de uma acção popular constitucional, poderão os cidadãos ou associações suscitar o incidente de inconstitucionalidade relativamente a qualquer norma aplicável à causa contrária à CRP. Nada obsta, a uma acção popular administrativa tendente a obter o pedido de declaração de ilegalidade de normas regulamentares ou de outras normas emitidas no desempenho da função administrativa que sejam lesivas dos mencionados bens constitucionalmente protegidos.
A acção popular traduz-se, em regra, num alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa, de acordo com o disposto no art.3º da Lei nº83/95. Assim, entram aqui em crise as teorias tradicionais d legitimidade baseadas no "interesse directo e pessoal" ou na "protecção da norma". Em bom rigor, os interesses comuns e o património público podem ser defendidos por toda a gente.
Outra questão importante a reter e que é sempre oportuno relembrar, é a de saber qual é o principal objecto da acção popular? A resposta é clara: a defesa de interesses difusos. Pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
A Constituição garante a acção popular de forma a prevenir, fazer cessar ou perseguir infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente ou do património cultural (art.52º, nº3, a)). O direito ao ambiente é configurado como direito fundamental judicialmente acionável por todos, individual e colectivamente. Em suma, trata-se de direitos sociais que recebem, deste modo, uma protecção constitucional qualificada. O ambiente é um bem autónomo quer relativamente aos bens que consituem o objecto de direitos patrimoniais específicos, quer em relação às coisas do domínio público (art.84º da CRP).
A CRP prevê a acção popular não só para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra os bens atrás mencionados, mas, ainda, para requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização. Todavia, há que distinguir nesta sede entre: os danos sofridos pelos particulares; os danos causados à colectividade; os danos difusos causados a um conjunto indeterminado de pessoas; e os danos colectivos particulares. No entanto, como salienta o Prof. Gomes Canotilho, a lógica da acção popular tem, sobretudo, a ver com os danos difusos e os danos à colectividade.
Mas, atenção, a acção popular não tem de se limitar aos casos individualizados nas duas alíneas do art.52º, nº3 da CRP. Pois, tal norma tem carácter meramente exemplificativo.
A acção popular, tal como vem descrita na lei, não é uma ultima ratio, ou seja, não é uma acção a utilizar apenas depois de esgotados os outros meios judiciais de tutela jurídica. Como tal, a acção popular pode configurar-se como acção principal e instrumento de defesa preferencial relativamente a outros meios processuais. Não assume, então, carácter subsidiário. Acrescente-se, ainda, que muitas vezes, o recurso primário à acção popular pode ser a via jurídica mais adequada.
O direito de acção popular, isto é, o direito de recurso aos tribunais, não preclude a possibilidade de os cidadãos, individual ou colectivamente, defenderem os mesmos interesses em fase pré-judicial, designadamente no e através do procedimento administrativo. A intervenção no procedimento administrativo permite aos cidadãos ou associações: controlar a legalidade e oportunidade de medidas e decisões administrativas de forma imediata; intervir colectivamente em procedimentos de defesa de interesses difusos extensivos a um grande número de cidadãos (os chamados "procedimentos de massa"); acompanhar o desenvolvimento e implementação de procedimentos administrativos complexos e gradativamente concretizáveis; desencadear os meios de impugnação administrativa (reclamações e recursos hierárquicos) das decisões da Administração.
Quando o art.9º, nº2 do CPTA remete para a Lei nº83/95, de 31 de Agosto, deve entender-se que o mesmo remete para um processo especial. Mas, não um processo especial acabado, antes pretende introduzir um conjunto de especialidades no modelo normal de tramitação a que tais processos estão subordinados (de acordo com a orientação do Prof. Mário Aroso de Almeida).
Em suma, qualquer cidadão, no gozo dos seus direitos civis e políticos (art.2º, nº1 da lei nº83/95) tanto pode dirigir-se aos tribunais administrativos, em defesa dos valores enunciados no art.9º, nº2 do CPTA, para, por exemplo, impugnar um acto administrativo, como para pedir a condenação da Administração a abster-se de realizar certas operações materiais.
Em bom rigor, a participação procedimental popular atribui legitimidade não só para a defesa de interesses próprios legalmente protegidos, mas também para a defesa de interesses altruístas, designadamente da legalidade e do interesse público. Em suma, a acção popular corresponde a um procedimento de massa em que tende a predominar a componente objectiva da participação, como sustenta o Prof. Vasco Pereira da Silva.

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