sexta-feira, 21 de maio de 2010

Afinal de contas, é ou não possível uma providência cautelar?

Caríssimos colegas, na esteira do que foi dito pelo Mestre João Gama (“devem dedicar-se à análise de jurisprudência. O Direito é o caso concreto!”), segue agora acórdão que tem como questão jurídica a possibilidade (ou impossibilidade) de instauração de uma providência cautelar de suspensão de eficácia (bem como de intimação de abstenção de co-incineração ao operador) de um acto administrativo de dispensa de avaliação de impacto ambiental. Esta decisão é importante, na medida em toca nas questões do caso 2, que tivemos de resolver por escrito.
Em termos muito resumidos, dois municípios requereram ao TAF de Almada a decretação de duas providências cautelares, já mencionadas supra. O tribunal acedeu ao pedido, bem como o TCA Sul, na sequência do recurso interposto. Vieram então os réus pedir o recurso de revista, por considerarem que havia um motivo de excepcional relevância na aplicação do Direito, o que mereceu o acordo do STA (STA, 11-01-2008)
Passo a referir a decisão do digníssimo tribunal (sob a forma de resumo pessoal):
O aresto «sub censura» considerou provável que, à execução do acto, se seguissem prejuízos para o ambiente e para a saúde das populações.
Desde logo, fere a atenção a circunstância de o acórdão ter enfrentado um pedido de suspensão de eficácia sem previamente atentar no tipo legal do acto suspendendo. Na medida em que vinha pedida a suspensão da eficácia de um despacho, impunha-se determinar qual o âmbito em que ele produziria tipicamente os seus efeitos, já que o apuramento dessa matéria constituía um antecedente necessário de duas operações ulteriores – a eventual qualificação dos efeitos prováveis do acto como danosos e a quantificação seguinte desses danos.
Depois, surpreende o grau de confiança com que as instâncias reconheceram haver um «periculum in mora» e efectuaram a ponderação de interesses (prevista no art. 120º, n.º 2, do CPTA). Se atentarmos na factualidade que a sentença do TAF de Almada e o acórdão do TCA-Sul autonomizaram em elencos próprios, constata-se que estão aí referidos a existência e o conteúdo de relatórios e pareceres pró e contra as práticas da co-incineração – mas não o facto, puro e simples, de que as operações do género atentam, certa ou previsivelmente, contra o ambiente e a saúde das populações limítrofes.
Portanto, a primeira questão a elucidar no que concernia ao pedido de suspensão de eficácia era, e é, a do tipo legal do acto suspendendo, pois daí se inferirá a função típica que ele cumpre e os efeitos práticos a que naturalmente tende. Ora, a factualidade provada diz-nos que o despacho em causa se limitou a dispensar um procedimento de avaliação de impacto ambiental (AIA) – o qual, não fora essa dispensa, seria exigível no âmbito do procedimento mais amplo que a A... iniciara com vista a obter as licenças para implantar e fazer funcionar no ... uma instalação de co-incineração de resíduos («vide» o art. 3º do DL n.º 69/2000, de 3/5, na redacção do DL n.º 197/2005, de 8/11, e o regime jurídico estabelecido no DL n.º 85/2005, de 28/4). Nesta conformidade, o acto suspendendo culminou um subprocedimento incidentalmente enxertado num processo de licenciamento mais vasto e em curso; e a função do despacho foi apenas a de eliminar um dos passos normais desse procedimento principal, simplificando e acelerando os seus trâmites. Sendo assim, a execução do despacho – que os ora recorridos querem paralisar – trazia o efeito de tornar mais ágil a prossecução do processo de licenciamento, propiciando à A... uma obtenção mais rápida e mais simples das almejadas licenças.
Todavia, a factualidade provada diz-nos que a «licença ambiental» e a «licença de instalação», relativas à co-incineração dos autos, foram emitidas a favor da A... ainda antes da instauração do presente meio cautelar; e diz-nos também que a «licença de exploração» concernente à mesma actividade foi emitida em 27/11/2006 – ou seja, dois dias antes de ser emitida a «resolução fundamentada» prevista no art. 128º, n.º 1, do CPTA, mas sem que os ora recorridos tivessem pedido nos autos a «declaração de ineficácia» (n.º 4 do mesmo artigo) desse terceiro e último acto de licenciamento. Sendo as coisas assim, avulta de imediato a suspeita de que a suspensão, decretada pelo TAF em 23/1/2007, incidiu sobre um acto que já então estaria inteiramente executado.
Dissemos acima que o despacho suspendendo era um mero acto de trâmite. Enquanto acto intercalar, ele tendia a projectar os seus efeitos típicos dentro da marcha do procedimento global em que se integrava – pois, e como é sabido, a natureza instrumental desses actos costuma confinar o seu alcance à sequência em que se localizam. Mas, se os efeitos próprios do acto se resumiam a dar uma certa feição aos termos ulteriores do procedimento – no caso, eliminando a necessidade da AIA e permitindo, assim, que o processo se desenvolvesse e acabasse sem ela – torna-se então certo que tais efeitos se esgotaram com o fim do respectivo procedimento.
Isto significa logo duas essenciais coisas: que o TAF de Almada – com o posterior beneplácito do TCA-Sul – suspendeu a eficácia de um acto já executado; e que essa decisão foi tomada sem que minimamente se ponderasse se uma tal suspensão era admissível à luz do estatuído no art. 129º do CPTA. Ora, podemos já adiantar que temos por absolutamente certa uma tal inadmissibilidade.
Aquele art. 129º recusa, «a contrario sensu», que se suspenda a eficácia de um acto que nenhuns efeitos produza ou venha a produzir doravante. Trata-se de uma solução lógica, pois, por falta de objecto, seria absurdo suspender-se «in futurum» uma eficácia inteiramente plasmada no passado. Ora, e como vimos já, a eficácia do despacho suspendendo resumia-se a conformar de um certo modo os termos ulteriores do procedimento mais geral em que ele se incluíra; mas, atingido o fim desse procedimento administrativo, uma tal conformação terminou-se e estabilizou-se, sendo então óbvio que a eficácia intercalar ou intermediária do despacho – que era apenas conformativa do «modus operandi» – completamente se esgotou.
Portanto, quando a suspensão da eficácia foi judicialmente decretada, o acto em causa já não estava em condições de produzir quaisquer efeitos, pois produzira antes todos aqueles a que naturalmente tendia. A tese contrária, induzida pelo requerimento inicial e passivamente aceite pelas instâncias, incorre numa confusão e culmina num erro: confunde o despacho suspendendo com o licenciamento efectivo da actividade e mistura ainda a dispensa de AIA com a co-incineração – como se tudo isso fosse uma e a mesma coisa; erra ao imaginar que a suspensão de um acto de trâmite suspenderia também, «ea ipsa», os actos de licenciamento já acontecidos e não autonomamente atacados – pois a presença (actual «tempore sententiae») desses actos evidenciava que eles não eram efeitos que o despacho suspendendo viesse a produzir no futuro, assim como os efeitos que se lhes seguissem seriam efeitos deles, e não do despacho de dispensa da AIA. Nesta conformidade, o pedido de suspensão de eficácia tinha de ser indeferido, por tal resultar das ocorrências procedimentais e ser imposto pelo art. 129º do CPTA. E esta certeza dispensa-nos de – como aconteceu no acórdão deste STA de 31/10/2007, proferido no rec. n.º 471/07-11 – avaliar se o despacho suspendendo era abstractamente idóneo para causar os «prejuízos de difícil reparação» aludidos no art. 120º, n.º 1, al. b), do CPTA e, sendo-o, se tais prejuízos existiriam presumivelmente em concreto e, ainda, com a magnitude bastante para justificarem o deferimento da providência.
Mostra-se também claro o motivo por que é de indeferir o pedido de intimação. A A... não pode ser judicialmente intimada a abster-se de co-incinerar pela razão singela de que foi admitida a fazê-lo através de actos administrativos de licenciamento que persistem e operam eficazmente na ordem jurídica. Portanto, qualquer ordem jurisdicional – fundada em razões de direito administrativo – dirigida à A... para que cesse as actividades de co-incineração na cimenteira em causa pressupõe que os respectivos licenciamentos tenham já deixado de valer ou, pelo menos, de produzir efeitos, única hipótese em que deveras se retornaria a um estado de vazio decisório a preencher pela intimação judicial, fosse ela provisória ou definitiva. Ora, e «in casu», a subsistência na ordem jurídica dos referidos licenciamentos a favor da A... justifica «recte et per se» a inadmissibilidade do pedido de intimação formulado nos autos.

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