sexta-feira, 16 de abril de 2010

Tutela penal VS tutela contra-ordenacional do ambiente

Tutela penal VS tutela contra-ordenacional do ambiente
O facto de a nossa Constituição não fazer referência à responsabilidade dos autores dos atentados ao ambiente não implica que tal responsabilidade não deva existir, e que, inclusivamente, não possa ter natureza penal. É pois, no âmbito deste trabalho que tecerei alguns desenvolvimentos acerca da tutela penal do ambiente no ordenamento jurídico português. O art.º66 da Constituição da República, cuja epígrafe é "Ambiente e qualidade de vida" consagra no seu n.º 1 um direito de todos " a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado", impondo, correlativamente, também a todos o dever de o defender. No n.º 2 do mesmo artigo já está em causa uma "exigência", um direito a prestações do Estado. Compete ao Estado, por força daquele n.º 2, a criação e desenvolvimento de reservas, parques naturais e de recreio, a classificação e protecção de paisagens e sítios, tudo com vista à garantia da conservação da natureza. Por último, o Estado deve promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica. Poderemos concluir daqui que o legislador constitucional demonstra preocupação com a protecção do bem jurídico “ambiente”.
A Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, (Lei das Bases do Ambiente) no seu art.º 46.º introduziu a expressão "crimes contra o ambiente" e estabeleceu que "além dos crimes previstos e punidos no Código Penal serão ainda considerados crimes as infracções que a legislação complementar vierem a qualificar como tal de acordo com o disposto na presente lei". À data da publicação da Lei n.º 11/87, o Código Penal incluía no âmbito dos crimes de perigo comum várias previsões (p. ex art.º 253.º, 269.º), em que reflexivamente o ambiente era protegido. Não eram, no entanto, previsões em que o bem jurídico protegido fosse, substancialmente, a qualidade do ambiente. Por outro lado, o referido art.º 46.º anuncia a criação de crimes contra o ambiente em legislação complementar, o que pode ser entendido como uma integração dos crimes contra o ambiente no direito penal secundário e não no Código Penal ou, pelo menos, só o Código Penal.
Com a revisão do Código Penal, em 1995, o legislador ordinário optou pela consagração no Código Penal de "crimes contra o ambiente". O Livro II do Código Penal integra os crimes de perigo comum (art.º 272.º e SS.):
• Art. 272º ("incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas"),
\ Art. 273º ("energia nuclear"). Para que seja possível a imputação de qualquer um deles é necessário que se prove um perigo para a vida, saúde, ou bens patrimoniais alheios de valor elevado bem como o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado consistente na criação do perigo.
• Art. 277º ("Infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços").
• Art 281º ("Perigo relativo a animais ou vegetais") é um crime de perigo concreto, de prejuízo que pode ser causado a animais, culturas, plantações ou florestas.
• Art 282º ("corrupção de substâncias alimentares ou medicinais"), art. 283º ("propagação de doença, alteração de análise ou de receituário")
A comissão de revisão do Código Penal começou por prever apenas os crimes de "poluição" e de "poluição com perigo comum", previstos respectivamente nos art.º 279.º e 280.º do actual Código. A introdução do crime do art.º 278.º, epigrafado "Danos contra a natureza" parece expressar a preocupação do legislador com a deterioração do meio natural e ainda com a exaustão ou exploração desmedida de recursos naturais. O bem jurídico protegido no art.278º é a preservação da natureza, a preservação da biosfera, através das suas componentes fauna, flora e recursos do subsolo. Na medida em que a protecção do meio ambiente se revela necessária (à sobrevivência humana), a tutela penal passa a ser adequada e proporcional à protecção do meio ambiente e, em última análise, à protecção do ser humano. O Direito Penal pune condutas atentatórias do bem jurídico "ambiente com qualidade ou equilíbrio", em consonância com a já existente protecção constitucional (artigos 62º, 9º alíneas d) e e), 81º a) e n) e 96/1 d) e nº 2, CRP. A consagração dessa tutela, no art. 279º do Código Penal, é, assim, exemplificativa da correspondência entre a função protectora de bens jurídicos, pelo Direito Penal, e o correspondente quadro constitucional. Preservar e defender o ambiente, reconduz-se à defesa da dignidade e liberdade da pessoa humana, cuja salvaguarda constitui o objectivo primordial do direito penal.
Artigo 279º do Código Penal
1- Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições:
a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades; b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ou c) Provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza;
De forma grave, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2- Se a conduta do nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
3- Para os efeitos dos números anteriores, o agente actua de forma grave quando:
a) Prejudicar, de modo duradouro, o bem-estar das pessoas na fruição da natureza;
b) Impedir, de modo duradouro, a utilização de recurso natural; ou
c) Criar o perigo de disseminação de microrganismo ou substância prejudicial para o corpo ou saúde das pessoas.
Pela inclusão sistemática do art. 279º seriamos levados a concluir que estamos perante um crime de perigo comum, estes são definidos como crimes em que o risco da acção potenciadora do dano se dirige a uma pluralidade de bens jurídicos.• Esta inserção é bastante criticada, pois é comummente entendido que se trata de um crime de dano. Esta interpretação retira-se da leitura da acta de revisão do C.P. A dissonância entre a natureza de crime de resultado de dano, que é o crime de poluição, e a sua inserção sistemática, detecta-se, também, pela leitura do art. 280º do Código Penal. Esse crime é de perigo ou de resultado de perigo (perigo concreto). O art. 280º tendo a estrutura de crime de perigo e ao exigir no seu nº 1 a verificação da conduta descrita no nº 1 do art. 279º afasta qualquer hipótese de o crime de poluição ter outra natureza que não a de crime de dano. No crime de poluição, a conduta contrária às prescrições ou limitações impostas, só pode ser cometida por acção, pois a autoridade competente, ao impor limites à emissão de poluentes, impõe uma ordem de "non facere" que só pode ser violada por um "facere" contrário a essas ordens. O crime de poluição, assumido pelo legislador como um crime de dano, é um crime material ou de resultado (criação de um dano juridicamente reprovado), exigindo o tipo de ilícito a verificação de uma poluição "em medida inadmissível", medida essa cujo conteúdo descritivo está no nº 3 do art. 279º do C.P. No momento de optar pelo direito contra ordenacional ou pelo direito penal há alguns aspectos a ter em conta: o direito contra-ordenacional, em matéria de ambiente, está inclinado para uma finalidade preventiva, na expectativa de que o dano ecológico não se chegue a verificar. Apenas quando a finalidade preventiva, sancionadora do desvalor da acção poluente e do perigo que ela representa para o equilíbrio ambiental, não faz parar a agressão ao bem jurídico é que o crime de poluição, do art. 279º entra em campo, reagindo e sancionando, mais do que o desvalor da acção, o desvalor do resultado. Fazendo um “percurso” pela jurisprudência nacional apercebemo-nos que as matérias ambientais não surgem muitas vezes em juízo, pelo menos, não de forma directa e imediata.
• Acórdão do STJ, 17/01/2002:
“1 - A produção ou emissão de ruído, seus efeitos lesivos para o homem e a sociedade e a tutela dos direitos e interesses envolvidos pode ser encarada por três ópticas:
- a do direito do ambiente, enquanto causa de poluição (art.º 21 e 22 da LBA);
- a do direito de propriedade, no domínio das relações de vizinhança, (art.º 1346, do C.C);
- a dos direitos de personalidade, enquanto possível ofensa à personalidade física ou moral de alguém (art.º 25 da C. República e art.º 70 do Código Civil) ”.

• Acórdão do STJ, 22/04/2002:
“O facto danoso é o "ruído" e "barulho" que causou nos apelados "irritabilidade" "perturbação no sono", "falta de concentração"; De um lado, temos um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, ou sono, e, do outro lado, um direito a um exercício de uma actividade comercial, e não há dúvida de que aquele primeiro direito, gozando da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias é de espécie e valor superior ao segundo, que é um direito fundamental que apenas beneficia do regime material dos direitos, liberdades e garantias. E sabe-se que quando os direitos são desiguais prevalece o que deva considerar-se superior.
Anote-se que a ofensa do direito ao repouso, ao descanso ou ao sono não é excluída pela simples circunstância de a actividade em causa ter sido autorizada administrativamente - a consagração legal de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento, nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo.
E quem desrespeite esse limite legal incorre em ilícito de mera ordenação social. Mas face à lei civil deve entender-se que o direito de oposição à omissão de ruídos subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior a 10 decibéis, e que a actividade donde eles resultam haja sido autorizada pela entidade administrativa competente, sempre que haja ofensas de qualquer direito de personalidade de um terceiro”.
• Acórdão do STJ de 26/01/2006:
“A localização dos aterros sanitários não se faz exclusivamente em função das características geológicas, geotécnicas e hidrogeológicas do local, devendo ter-se em conta também as regras da sua construção e da sua impermeabilização, de forma a concluir-se que o mesmo não afecta o direito a um ambiente sadio; Nessa aferição, deve ter-se em conta, não a certeza absoluta de que não há risco da contaminação do ambiente mas que tal objectivo se circunscreve a um risco tolerável. E, desde que o risco seja tolerável, não com uma certeza absoluta, mas numa perspectiva de razoabilidade, então, é possível a compatibilização entre o direito da sociedade em geral à eliminação dos lixos e o direito dos vizinhos à não contaminação do ambiente”.
Como diz Gomes Canotilho, "...os problemas ambientais inserem-se na problemática das relações de vizinhança;" contudo, "o direito ao ambiente salubre não poderá aspirar a qualquer pretensão de imodificabilidade dos elementos fisico-quimico-biológicos do espaço e do território a não ser quando eles ocasionam situações de perigo para a saúde dos indivíduos numa zona concretamente delimitada". Por isso, o mesmo autor ensina que "é difícil vislumbrar qual a utilidade atribuída ao indivíduo como pessoa, que seja diversa da utilidade dos restante membros da colectividade em relação ao ambiente", considerando que o direito ao ambiente "só pode conceber-se como bem da colectividade de fruição indivisível".
O Professor Vasco Pereira da Silva enumera as vantagens da tutela penal, entre elas destacam-se: a maior intensidade da tutela ambiental, já que o direito penal age de forma mais “eficaz”, efectiva e repressiva, podendo, em última análise, uma conduta “anti ambiental” levar à aplicação de uma pena privativa de liberdade, vantagem esta que vai de encontro com a existência de garantias do processo penal.• Por outro lado apresenta um leque de desvantagens, de onde se podem retirar a inadequação deste ramo do direito para o direito do ambiente, por este assentar numa ideia de prevenção e o direito penal numa ideia de repressão de comportamentos já praticados; um “perigo de descaracterização e de subalternização” que colocaria o direito penal numa posição de “acessório administrativo”.
A Responsabilidade criminal das pessoas colectivas
Na acta 32 da Comissão de Revisão do Código Penal o art. 273º do projecto, sob a epígrafe "poluição", continha o nº 4 que consignava que "a responsabilidade das pessoas colectivas pelas condutas previstas neste artigo é regulada em lei especial". Tal nº 4 do art. 273 do Projecto não passou para a sua versão final. Embora o art. 11º do Código Penal declare que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal, não é excluída a consagração legal dessa responsabilidade, embora excepcionalmente. Diversamente, no domínio do ilícito de mera ordenação social, está consagrada a responsabilidade das pessoas colectivas (DL 433/82, de 27 de Outubro). Impedindo-se a punição da pessoa colectiva, no âmbito da criminalidade (em particular nos crimes ecológicos) continuar-se-á a punir, apenas e eventualmente, os titulares de órgãos das pessoas colectivas, sem que os efeitos político-criminais da punição se façam sentir plenamente. A pessoa colectiva só pode ser responsabilizada ao nível contra-ordenacional, punindo-se com a coima e a sanção acessória. O legislador, ao optar por esta via “seguiu” a posição propugnada pelo Professor Figueiredo Dias, segundo a qual a responsabilidade criminal de pessoas colectivas só deve surgir no âmbito do direito penal secundário. Para o Professor Paulo Sousa Mendes esta posição peca por algum formalismo, pois a responsabilidade das pessoas colectivas ficará à mercê da existência ou não existência de normas puníveis no C.P. O mesmo autor aponta para a situação de o legislador crer somente na responsabilidade criminal de pessoas singulares para assegurar a defesa do ambiente.

BIBLIOGRAFIA
MARQUES DA SILVA, Germano, A tutela penal do ambiente, in Estudos de Direito do
Ambiente, Porto, 2003
SOUSA MENDES, Paulo, Vale a pena um Direito Penal do Ambiente?, Lisboa, 2000
SILVA, Vasco Pereira, Verde cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002



Ana Luísa Carvalho, subturma 2

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