sábado, 24 de abril de 2010

Ambiente não é Estado: é oxigénio do cidadão

O papel do cidadão no domínio ambiental – o procedimento em especial

Saber como começar uma reflexão jurídica não é uma tarefa propriamente fácil, ainda mais para um estudante universitário, que ainda está tão cru no caminho do conhecimento e informação que trilhará ao longo da vida. Porém, é um desafio que se tem de enfrentar. Assim, a melhor forma de começar é, na minha perspectiva, colocar as questões que mais dúvidas suscitam, bem como aquelas que possam ter uma relevância prática importante, e subscrever a opinião pessoal. Desse conjunto de pequenas reflexões, espera-se, surgirá um bem intelectual dotado de um mínimo de personalidade, originalidade tão difícil para alguém que está depois de tantos ilustres sábios. Mas urge começar.
Recordar a razão pela qual o homem se aventurou, e assim permaneceu, numa organização estadual, deve ser, na minha perspectiva, o ponto de partida da grande parte das análises jurídicas. E esse motivo, como julgo ser do conhecimento da generalidade dos cidadãos, é precisamente a fatalidade do caos. Sim, embora todos nos lamentemos pelo estado das coisas na actualidade, a verdade é que a História provou ser o Homem incapaz de sobreviver sem uma estrutura orientadora com um nível mínimo de autoridade. É indiscutivelmente necessária uma entidade que possa realizar aquilo que as pessoas estão, individualmente, impossibilitadas de fazer, como as actividades de segurança/polícia, de criação de estruturas que a todos beneficiem e prestação de meios que melhorem a qualidade de vida. E esse ente é a Administração Pública, capataz do legislador, ou seja, subordinada às decisões dos cidadãos, representados num Parlamento.
Porém, se a tal a evidência somos obrigados a rendermo-nos, também é para todos evidente, depois de alguns séculos de consciencialização, que os seus direitos fundamentais, decorrentes da dignidade humana, têm que ser conservados, sob pena de perversão do próprio sistema político. É que a Administração serve, acima de tudo, os interesses de cada um de nós (embora necessariamente numa lógica de cedência permanente, de compatibilização de interesses). O interesse de “todos” é aquilo a que se chama de Interesse Público e é precisamente este o propósito constitucional da Administração (CRP). No entanto, perguntarão, qual a principal fonte de aferição do Interesse Público? Respondo: a participação popular no procedimento administrativo. A minha reflexão incidirá sobre este tema em particular.
Muitas já foram as vozes que se pronunciaram acerca da problemática da natureza do direito ao ambiente, bem como sobre a estrutura que assume a nível constitucional (unicamente tarefa estadual ou efectivo direito fundamental). Aliás, é provável que essa discussão não conheça, tão brevemente, um fim; porém, não se pode ser impedido de tentar.
Em primeiro lugar, começo por dizer que as considerações que o Professor Vasco Pereira da Silva tece acerca da identidade de direito fundamental ao ambiente tem todo o sentido. Se é verdade que o legislador constituinte quis incluir a tarefa fundamental estadual de protecção do ambiente (9º), também se preocupou em consagrar um instrumento de protecção individualizada ao cidadão, inserindo o artigo 66º no contexto dos direitos fundamentais. É que, a considerar a protecção do ambiente como algo de “meramente” objectivo, qual seria o sentido útil de acrescentar o artigo 66º? Não quero com isto dizer que essa protecção individual era algo de absolutamente necessário: a constituição simplesmente optou por reforçar essa tutela ambiental ao atribuir aos cidadãos um direito fundamental, gozando das garantias que são inerentes a esse tipo de estrutura. Contudo, não se pode deixar de dizer que este era um passo previsível numa tendência de atribuição crescente de direitos fundamentais como realização plena e efectiva da dignidade individual. Na minha formulação: a dignidade da pessoa humana não é uma realidade de chegada, ou seja, não podemos estar à procura do seu verdadeiro significado -ela é o resultado de um processo permanente de evolução da sociedade civilizacional. Ou seja, à medida que o ser humano soma anos de existência e de descobertas, ele constrói, para a sua circunscrição socio-temporal, um conceito do que é a sua própria dignidade. Neste contexto, surge o direito fundamental ao ambiente, um daqueles que pertence, na doutrina, à terceira geração dos direitos fundamentais. Este mecanismo é, sem dúvida, uma forma mais efectiva de tutelar o ambiente.
A questão que surge de seguida é saber se ele é, ou não, um direito subjectivo, enquanto posição jurídica de vantagem individualizada. É que, uma coisa é considerar o direito fundamental ao ambiente, outra, diferente, é considerar que a sua estrutura é a de um verdadeiro direito subjectivo: permissão normativa específica de aproveitamento de um bem (Professor Menezes Cordeiro). Em relação a esta problemática, é conveniente referir uma teoria “prévia” do Professor Vasco Pereira da Silva. Sustenta o autor que, na verdade, não se deve distinguir entre direitos de primeira, segunda ou terceira categorias, mas sim incluir as posições substantivas de vantagem do cidadão num conceito mais amplo de direito subjectivo público. Isto é, não faz sentido traçar uma distinção entre direitos subjectivos stricto sensu, interesses legalmente protegidos e interesses difusos, já que são todos eles formas variadas de conceder protecção, através de diferentes técnicas jurídicas. O autor qualifica depois o direito ao ambiente como um direito subjectivo, naquela concepção ampla, e não como um mero interesse de facto, tese sufragada pela Professora Carla Amado Gomes. Como bem salienta o regente, não é o bem ambiente, de natureza colectiva ou pública, que é apropriável, antes se trata de considerar que tal bem pode dar origem a relações juridicas, em que existem concretos direitos e deveres.
Embora, à partida, seja bastante sedutor aderir àquela primeira perspectiva do Professor Vasco Pereira da Silva, não me parece que, a final, seja uma posição a subscrever. Se, de facto, temos várias formas de protecção do cidadão, uma conferindo um grau de tutela mais intenso do que a outra, qual será a vantagem de englobar tudo num único conceito e, assim, gerar uma maior confusão em relação aos níveis de protecção? Existem normas jurídicas que tutelam a esfera individual, se nos permitem a utilização de linguagem matemática, a uma percentagem próxima dos 100%, outras a 100-x. Logicamente, quanto maior for o valor de x, menos acentuada é a tutela individual e, na mesma proporção, maior é a dimensão objectiva de protecção, ou seja, a tutela “meramente” do interesse público. É nesta escala que surgem as diferenças terminológicas: os direitos subjectivos designam aqueles níveis de protecção mais vincada da tutela individual; os interesses legalmente protegidos, formas mais atenuadas e, os interesses difusos, enquanto zona de transição entre a tutela predominantemente subjectiva e a tutela sobretudo objectiva.
Assim, subscrevo a posição mais tradicional quanto a este problema.
Depois desta breve consideração, poderia ser-se levado a pensar que o próximo passo desta incursão seria qualificar o direito fundamental ao ambiente em termos estruturais de protecção. Contudo, não me parece que haja um interesse real nessa tarefa. E passo a explicar: a partir do momento em que o legislador constituinte atribuíu um direito fundamental ao ambiente, colocou à disposição do cidadão meios de defesa do bem em causa. Noutros termos, o que se quer assegurar é um grau mínimo de aproximação/ligação entre o bem ambiente e a esfera do particular, concedendo-lhe mecanismos de protecção a título próprio desse bem. E, a partir da leitura da constituição, pode-se retirar que o particular terá direito a agir quer em termos procedimentais quer em termos processuais, neste âmbito. Não é propriamente a formulação constitucional que representa um direito subjectivo: é sim uma fonte de criação de normas jurídicas que possibilitem a defesa do ambiente pelo cidadão.
Apesar de, como já referimos, não apoiarmos o conceito amplo de direito subjectivo, a ideia genérica de protecção individual que faz transparecer é, no entanto, de aproveitar. É nesse sentido que considero muito bem conseguido o pensamento do Professor Vasco Pereira da Silva: é o reconhecimento de direitos subjectivos que faz com que o indivíduo deixe de ser tratado como um objecto de poder, passe de súbdito a cidadão, se transforme num sujeito de direito em condições de estabelecer relações jurídicas com os órgãos do poder público.
A próxima etapa consiste precisamente na análise do conteúdo material/jurídico deste direito fundamental, ou seja, a sua extensão em termos de concretos poderes jurídicos das pessoas (decerto que se vão incluir alguns direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos). Na verdade, tal tarefa interpretativa não é mais do que aquilo que se tem que fazer em relação aos outros direitos fundamentais: todos necessitam de ser objecto de uma interpretação densificada. Antes, porém, de avançar para uma análise pormenorizada das posições substantivas de vantagem presentes na legislação materialmente ambiental, há que desenvolver o conceito de direito fundamental ao ambiente. Na minha humilde opinião, aquilo que resulta do texto constitucional é que o Estado é obrigado a encontrar mecanismos de protecção do ambiente, quer esses mecanismos sejam de cariz negativa quer predominantemente positiva. Salvo o devido respeito por outras doutrinas, e não querendo propriamente criar aqui uma doutrina própria acerca dos direitos fundamentais (até porque não é esta a cadeira mais apropriada), não me parece que esteja totalmente correcta aquela teoria da duplicidade de vertentes positiva e negativa de actuação estadual. Da minha reflexão o que resulta é que, especialmente no domínio ambiental, o que se exige essencialmente ao Estado é que crie normas de abstenção de violação do ambiente, quer por parte dele, quer por parte de outros sujeitos privados, e que invente normas que promovam a melhoria ambiental. Ou seja, o que se pode retirar é que a imposição é essencialmente positiva, de criação normativa. É claro que entendo o que defende a teoria da duplicidade de vertentes dos direitos fundamentais sufragada, entre outros, pelo Professor Vasco Pereira da Silva: um direito fundamental compreende um vertente positiva de adopção de medidas de promoção ambiental e a vertente negativa de evitar comportamentos violadores desse mesmo direito. Porém, a vertente negativa, na grande maioria das vezes, também é positiva, pois o que existe é uma obrigação de criar regras de abstenção de violação do ambiente, pelo próprio ente público.
Os particulares, enquanto titulares de um bem ambiental, têm acesso a vários mecanismos de protecção, como já se mencionou. E a protecção dessa posição substantiva consubstancia-se, essencialmente, através da participação/ intervenção nos procedimentos administrativos que tenham uma implicação significativa a nível ambiental (são procedimentos predominantemente inseridos noutros procedimentos com um alcance dirigido). Como afirma Joana Guerreiro de Araújo, a legitimidade para intervir num procedimento resulta das posições das pessoas face ao conteúdo possível das decisões e varia em função do específico mecanismo procedimental-preventivo em apreço. Ou seja, e de acordo com o defendido por Esteves de Oliveira, a legitimidade deve-se verificar para cada específico momento do procedimento, apenas em relação a certos actos (que correspondem a instrumentos de protecção como a audição dos interessados e a apresentação de pedidos de esclarecimento e sugestões).
De acordo com o 53º/1 CPA, são legítimos os titulares dos interesses individuais e diferenciados, bem como as associações que protegem estatutariamente esses interesses. Portanto, aqueles que detenham posições substantivas de protecção podem interagir tendencialmente sem barreiras nos procedimentos que os possam afectar directamente.
Uma atenção particular em relação aqueles particulares que são afectados pelos planos especiais de ordenamento do território ou municipais (pois são os únicos directamente vinculativos em termos privados – 3º/2 Regime dos Instrumentos de Gestão Territorial). Se o senhor A for potencialmente impedido de construir a casa com que tanto sonhou, no terreno herdado de seu pai, não terá ele direito a uma intervenção especial na elaboração dos planos? A lei estabelece períodos de discussão pública prévia à aprovação (6º/1 e 2 RIGT), certamente. Porém, julgo que aqueles que vêm a sua restrição quase total no seu poder de edificar deveriam, para além de ser notificados pessoalmente, poder participar mais activamente nessa delimitação. Seria também uma forma de estabelecer o equilíbrio entre os vários proprietários certamente mais eficaz do que os métodos apresentados (ver especialmente 138º RIGT). Acrescente-se ainda que, não havendo audiência dos interessados, a consequência jurídica é a nulidade, por ser um direito fundamental análogo aos direitos liberdades e garantias, já que se estabelece para defesa dos interesses, e não apenas para ajudar a autoridade pública. Essa participação no procedimento é depois sujeita a controlo através da fundamentação.
Mas não são apenas os afectados directamente que podem participar: os titulares de interesses difusos (em que há ausência de uma radicação jurídica subjectiva, o direito já não é só de um ente em particular mas tem incidência num conjunto indeterminado de cidadãos) também podem participar. Na senda de Ilda Côco, não se pode olvidar, aliás, que o procedimento é o momento de eleição para a manifestação e defesa dos interesses difusos e o instrumento privilegiado de participação dos entes representativos dos interesses difusos. Ao atribuir-se um direito de participação, aumenta-se, sem dúvida nenhuma, a legitimidade das decisões, pois, ao possibilitar a introdução de uma vontade exterior, o que se consegue é a concretização da efectivação dos direitos vários que possam estar em causa.
Participemos, então!

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